Por Marcelo
Lopes
A
inquietação, em seus vários níveis e formas de se expressar, é a força motriz
de qualquer processo criativo. Pode ser trabalhoso, mas sua gênese depende de
coisas fundamentais como suor e perseverança. Isso em qualquer idade, lugar ou
situação. Fuçando um infindável mundo de papeladas em casa, esbarrei com
verdadeiros tesouros de um tempo de inquietações estudantis que provam
definitivamente que eu nunca fui um sujeito normal. Que bom.
Quando
entrei para a universidade, ingressaram também muitos amigos e colegas do mesmo
naipe, povoando os pátios, salas e espaços livres como uma manada irrequieta e
indócil, prontos a serem lapidados de alguma forma, tendo em comum muita ideia
na cabeça e nenhuma câmera na mão. Cada uma achou seu caminho para dar vazão a
tanta energia, para além dos estudos: música, teatro, dança, pintura, centros
acadêmicos, DCE; enfim, tudo o que os currículos formais não davam conta na
grade acadêmica. Minha escolha e de outros dois amigos, Caio Cesar e Elton Quadros, teve por si mesmo um nome à altura da proposta: “A Caxumba Desceu”.
A
Caxumba era um fanzine, assim como as outras duas iniciativas do gênero que
vieram depois. Uma revista artesanal, diagramada com recortes xerocados,
repleta de textos infames, tirinhas de personagens criados especialmente para
sua ideia essencial: esculhambar com tudo e todos da forma mais democrática
possível. O título, cuidadosa e merecidamente escolhido, venceu as outras duas sugestões – “Libido Suicida” e “Coito Interrompido” – com o
louvor da sua potente imagem, que viria a se tornar a logomarca da revista: uma
versão estilizada da estátua de David, de Miguelangelo, submetida às sequelas de uma
caxumba recolhida (vide o desenho para a capa da primeira edição).
Eram poucas as
tiragens para cada número, cedidos em forma de cópias reprográficas como apoio
pelo então coordenador de produção vídeo da Uesb, o sempre irrequieto e saudoso
Jorge Melquisedeque. Ideias assim, por mais insanas que pareçam, necessitam de
olhares generosos para que possam frutificar em experiências válidas. E meu
velho amigo Jorge não só apoiava, como atiçava para ver no que dava.
O Grande Putz e Cenas do Cotidiano/ Ilustração: Marcelo Lopes |
O
fanzine teve seu lançamento numa das sessões do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb. A fala representativa da reitoria – que em discurso nos
adjetivou como “arautos da nova linguagem” – ainda reverberou em risadas no
fundo do auditório. Não da plateia, mas nossas mesmo, o trio de arautos.
As seções da
revista traziam pérolas como o “Festival do Inferno da Bahia”, com as bandas
mais quentes do Axé, vindas diretamente das profundezaz com "Bel e seus Zebus"; a “Campanha Mocreia Esperança: adote você
também uma mocreia”; e patrocínios fictícios do Papel Higiênico Soprano e
dos Chicletes Nagô (sabores oguntê, nagolelê, ojuobá, acarajé, abará, zumaê e
vendidos nas cores Gil e Caetano). Recheados de ilustrações, charges e tirinhas
o fanzine angariava adeptos e sucesso a cada lançamento. Mais prazerosa que a
reação do público leitor era conceber tantas asneiras criativas em intermináveis
reuniões de pura risada.
Cenas do Cotidiano/ Ilustração: Marcelo Lopes |
Revista Mercúrio |
A segunda, a revista Movimento Dodói, era uma versão local do Dadaísmo e tinha à capa de cada edição uma versão desenhada de uma cusparada de Fanta laranja sobre uma folha de papel em branco, contornada à caneta (já seca, obviamente). A Dodói reunia textos de conteúdos e estéticas mais absurdas, mas divertidas, trazendo poemas antológicos como O Bidê:
Bi = 2
2 D
D sentar e
D lavar
Rememorando
estas passagens criativas é possível perceber o valor que todas estas experimentações
trazem para construção de um futuro criativo. A importância do novo, do
provocativo, ainda que expressa de forma inusitada, é reconhecidamente um
componente visceral e educativo, assumidamente inquieto, capaz de gerar tantas
outras ideias. Partilhei (e partilho) destas experiências ainda hoje com muitos
destes mesmos amigos e tantos outros que se somaram ao longo do tempo e a eles
agradeço imensamente.
Abraços
a Caio Cesar, Elton Quadros, Ronaldo Ferraz, Danilo Moreira, Ricardo Marques, Mauro Alves, Rai Araújo, Juca Marcos, Ricardo Brasil, Claudia Rizo, Gheu Teixeira, Helisson Santos, Claudia Denise, Alberto Bonfim, Ana Lucia Santos, Herberson Sonka, Humberto Andrade, Fábio Sena, Vanilson Marques, Vanderli (Bite), Iolando Fagundes, Nora Bittencourt, João Marcos, João Paulo e um sem números de outros
parceiros.
Ceu, vc não vai acreditar... tenho o hábito de guardar muitaaaassss coisas e durante uma arrumação para mudar de casa encontrei os exemplares de A Caxumba Desceu, Mércurio e Movimento Dodoi.... morri de rir ao reler essas revistas... era demais... tá aí, vc deveria relançar elas.
ResponderExcluirBjs!!!
Cláudia Denise
É uma ideia legal, Cau... Mas só rola se for numa versão virtual... Daqui a um tempo posso começar a reunir material.
ResponderExcluirBjo!
Valeu, Tchellos!rs
ResponderExcluirVeleu, Elton!! Abração!
ExcluirTranscrição do comentário de Ronaldo Ferraz no Facebook:
ResponderExcluir"Que boas lembranças Marcelão. Quando terminamos a Mercúrio resolvemos literalmente lançá-la no pequeno e antigo auditório da UESB (hoje sala do júri). Conseguimos convencer a reitoria a bancar um sarau de lançamento regado a vinho e salgados. Muita gente boa tocou nesse dia (Cláudia Rizo, Iolando Fagundes, Ricardo Marques, Dirlei Bonfim - como você lembrou) e recitou poesia. Lembro-me, ainda, que no dia do referido sarau, providenciando alguns coisas, eis que encontro Elomar Figueira no centro da cidade. Empolgadíssimo, mostro a ele uma Mercúrio pegando fogo na mão e digo que será "arremessada" (como de fato foi) logo mais a noite (assim mesmo, despojadamente), e desfiro o convite: não poderia participar do referido evento e engrossar o caldo musical? Tomado pela ousadia, aquilo não foi um convite, mas uma pirraça. Sendo assim, espero pela delicada resposta elomariana do NÃO, acompanhada pelo proverbial tratamento que lhe é peculiar. Eis que,surpreendentemente, este me diz que teria o maior prazer em dar o ar da graça se não fosse um compromisso na capital. Que pena, deveria ter insistido mais um pouco e dito: não tem problema, a gente lança quando o malungo chegar, vinho demora para azedar."
Grande Ronaldão!