quinta-feira, 11 de abril de 2013

Territórios aonde, cara pálida?


Por Marcelo Lopes

Um dos maiores problemas na qualidade de vida do brasileiro, gerador de uma crise profunda na realidade social em que vivemos é a concentração econômica. Uma questão que nasceu como resultado do longo processo histórico que ainda hoje nos define. Moldada numa lógica torta desde a colonização, iniciada aqui quando da repartição de todo o território com as Capitanias Hereditárias, quer eram no final das contas imensas faixas de terra nas mãos de pouquíssimos donos. Eram cedidas pela Coroa Portuguesa por meio da doação de lotes de terra com a tarefa de colonização e exploração destas áreas a particulares. Foram nossos primeiros latifúndios.

Dados antigos com realidade atual
De lá para cá, tudo foi feito para que a detenção do poder da terra, da economia, da política e do conhecimento (essa ferramenta libertadora) se mantivesse circunscrita a um número reduzidíssimo de pessoas e lugares. Ainda hoje, no país, seus efeitos são extensos. Não se manifestam apenas na dicotomia socioeconômica entre o Norte/Nordeste e o Sul/Sudeste, distanciados pela diferença na concentração de recursos, mas expressos em toda uma gama de práticas incorporadas colateralmente, como o bairrismo, o preconceito e a dinâmica social, flutuando em camadas mais sutis (às vezes nem tão sutis assim), podando, sobretudo, oportunidades de desenvolvimento humano mais equilibradas geograficamente dentro do país. Também em decorrência deste contexto, por muito tempo se ouve falar do desequilíbrio econômico provocado pela alta concentração de recursos e investimentos na metade sul do Brasil, especialmente no eixo Rio/São-Paulo. São críticas feitas dentro e fora de regiões menos favorecidas, num debate longo e lento, sem muitas transformações efetivamente consideráveis.

Num âmbito mais próximo da nossa realidade estadual, estes mesmos debates fazem parte da pauta do que vem se discutindo na Bahia em termos de políticas públicas. Há alguns anos, seguindo diretrizes pontuadas pelo governo federal, o estado, já na gestão Wagner, adotou em sua estrutura os chamados de Territórios de Identidade. Segundo o site oficial do Governo da Bahia, o objetivo é “identificar prioridades temáticas definidas a partir da realidade local, possibilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões”, reconhecendo “a existência de 27 Territórios de Identidade, constituídos a partir da especificidade de cada região”. Sob essa perspectiva são também pensadas as políticas locais para a cultura.

Ou pelo menos era assim, a princípio.

Simbologia: no site da Secult a fita do Senhor do Bonfim ilustra a cultura
de Salvador como se a foto contemplasse todo o estado. Será?
Na prática, funcionava desta forma: o direcionamento dos recursos para a realização de iniciativas culturais era aberto ao acesso público via editais, direcionados a cada Território na busca do atendimento as suas especificidades. Em não se habilitando projetos em número satisfatório, os demais recursos eram redistribuídos proporcionalmente para os demais territórios. Essa lógica visava oportunizar aos 417 municípios do estado o acesso a recursos para suas mais diversas e legítimas manifestações, por mérito natural, tendo por critério de aprovação - na disputa entre seus pares - a adequação da proposta à linguagem de um projeto que comprovasse por A + B a justeza da sua manifestação. Como disse, pelo menos era assim.

Nos últimos dois editais lançados pela SecultBa, fica cada vez mais patente que a atual gestão da secretaria não acredita que a concentração de recursos numa só região seja de fato um problema. Por isso pergunto: será que, por uma visão muito “moderna” de gestão, se acredite mesmo que um processo equivalente ao de colonização do interior seja a salvação, a partir do qual o beneficiamento de uma metrópole irradie cultura por pelos poros para todo o território? Se não é, parece.

Ironias à parte, esta concentração é um fato. A política dos Territórios deixou de ser uma referência para se tornar apenas uma nomenclatura na tabela: os editais, desde 2012, desconsideram as especificidades de cada região e abrem indistintamente para todo o estado o acesso aos recursos para a cultura, com o digníssimo termo “democrático”, pontuado nos relatórios do órgão quando da divulgação dos resultados. Efetivamente, retonarmos à concentração desproporcional de projetos aprovados na região metropolitana de Salvador em detrimento à total desconsideração ao resto do estado. Somente no setor audiovisual foram 84% (DOE, Março/2013) no território da capital. Isso não é prova de competência, apenas de protecionismo.

Em argumento institucional contrário, é comum se ouvir que os territórios não dão conta de inscrever projetos para as demandas abertas e que por isso foi preciso repensar a lógica dos editais. Ora, para grupos e artistas do interior o que se chama de “lógica dos editais” ainda é uma espécie de bicho de sete cabeças, e mesmo que não o seja, subtende um domínio de linguagem técnica muito complexa, que pouco se encaixa na realidade de muitos artistas no interior, mais afeitos à dinâmica local de sua própria arte. Reargumenta-se então que o estado oferece cursos de capacitação para tanto e que ainda assim os resultados são ínfimos. Neste caso, afirmo categoricamente: os editais são uma realidade recente, que não chegou sequer a maturar-se Brasil afora, e são pouquíssimos os que dominam sua linguagem. Cada órgão concedente desenvolve seu próprio modelo para edital e formulários, sempre com diretrizes diversas dos demais, exigências legais, documentos, procedimentos, critérios, certidões, habilitações e referências legais as quais mal temos tempo de nos adaptar.

Dois ou três cursos de capacitação não mudam a realidade de décadas de práticas na cultura brasileira. Se o modelo não dá conta, avance e refaça-o, não há desculpa para o retrocesso. Se a política de territórios é muitíssimo mais recente, como esperar que produtores, artistas e demais agentes da cultura, afeitos organicamente na feitura de suas artes - muitos ainda em vias de formalização profissional - detenham em tão pouco tempo o domínio técnico para provarem que são de fato artistas? Que recursos materiais e consultivos têm disponíveis para tanto? E, quando os conseguem, por quanto tempo os tem em mãos? A secretaria acredita mesmo que a dinâmica competitiva do mercado da região metropolitana é a mesma no interior do estado?

E por isso, de fato, não há competição. Há ainda dificuldades complementares: quando o próprio MinC exige dos proponentes comprovação de apenas um ano de exercício na área que se pleiteia, levando em conta até menos tempo, a depender do histórico da equipe encarregada, a SecutBa exige três de comprovação formal. Como pensar, por exemplo, a realidade da produção audiovisual nesses termos no interior em comparação com a capital do estado?

Temos aqui, em escala regional, a mesma lógica da concentração que separa Norte e Sul brasileiros. Entre o final de março e primeira quinzena de abril de 2013, é possível consultar os resultados dos últimos editais no Diário Oficial do Estado. Na coluna “território de identidade” – esta mesma que deveria parametrar os tais dados democráticos – é possível elencar a origem dos projetos aprovados. A partir daí, tirem suas próprias conclusões.

E se chegarem a conclusões similares, passem adiante, reivindiquem, compartilhem nos e-mails de amigos e dos nossos representantes do executivo e legislativo as suas opiniões. Façam-se ouvirem... porque mesmo aqui, na colônia, nossa cultura se impõe.

Um comentário:

  1. Infelizmente na area teatral a realidade é ainda mais cruel. No penultimo edital dos 9 projetos de Conquista apenas um foi contemplado e no ultimo apezar de novamente termos varios projetos o resultado foi o mesmo. Coincidencia ou não o mesmo grupo foi contemplado nestas duas ultimas edições.

    ResponderExcluir