Por Marcelo Lopes
Sergio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, analisa perfeitamente o perfil do homem
brasileiro, naquilo que ele classificou como o “homem cordial”. Diferente do
que possa parecer, o termo cordial não tem nada a ver com “bonzinho” ou “bom
caráter”; tem origem nas “cordas do coração”, na noção de sentimento, passionalidade,
naquilo que faz as relações pessoais serem mais fortes que as leis, a ordem e a
hierarquia. Daí deriva a dificuldade que temos separar o que é público - do
interesse de todos, submetido a regras coletivas - daquilo que é privado, da
alçada individual, na base do farinha-pouca-meu-pirão-primeiro.
Incorporado a essa nossa
ibérica, a ideia do jeitinho brasileiro, que sempre burla de alguma forma o que
é estabelecido para todos em favor de um ou outro, se manifesta na nossa “cultura”,
nos menores detalhes; da furadazinha inocente na fila do banco à ideia de que
tirar uma vantagemzinha mínima - só desta vez - não prejudica ninguém. Desconstruir
tudo isso é um exercício diário, um desafio para todos nós – você e eu,
inclusive. Não se engane.
Existe entre a
educação e a cultura um vínculo íntimo, uma linha mais grossa que sal de
churrasco. O conceito de cultura envolve elementos constitutivos como
comportamento, crenças, manifestações das mais sutis às mais expressivas,
individual ou coletivamente. Por isso, naquelas horas em que a gente mal para
pra pensar nessas coisas é que o nível de consciência internalizada que
cultivamos faz a diferença de postura. Assim, faço a pergunta, e tão prontamente
quanto questiono, sem pensar me responda: você paga os dez por cento ao garçom?
Parece uma pergunta
idiota, mas raciocine comigo: aqueles 10% é o que chamamos de gorjeta embutida.
Pagamos a conta e junto com ela vai também um valor destinado ao funcionário
que nos atendeu. Em alguns casos vale muito à pena gratificar quem nos atende
tão bem num bar, restaurante ou outro lugar qualquer. Outras vezes nem tanto –
e nestes casos nossa vontade ou atitude é de não pagar mesmo. O cerne da
questão é: essa gratificação vai mesmo para o funcionário daquele
estabelecimento?
Como a cultura também
passa por situações corriqueiras como esta, levanto mais este assunto, desta
vez como consumidor. Os espaços que chamamos de socializáveis, de encontros e
entretenimento, muitas vezes com apresentações musicais, só funcionam com a manutenção
de uma logística de atendimento. São inúmeros funcionários em pesadas jornadas
de trabalho, que avançam noite à dentro e recebem, geralmente, muito pouco. Não
raro, pergunto a quem me atende num bar se de fato ele recebe aquela parcela acoplada
à “dolorosa”. Infelizmente, a resposta cada vez mais frequente é um “não” indignado. Não sei
qual é a cidade de quem lê este texto nem o percentual de incidência dessa
situação na sua região, mas tenho detectado isso, em maior ou
menor grau, em boa parte dos lugares que conheço e/ou frequento. Há sim, aqueles que de fato repassam, mas estes têm se tornado quase uma exceção.
Acredito que a
gorjeta seja realmente um modo de reconhecer o bom trabalho. O problema é que,
como nem sempre esse valor vai para quem nos atende, comecei a fazer cálculos
interessantes. Voltemos um pouco aos problemas de matemática da escola (eu
sabia que um dia eu iria achar um uso para aquilo tudo!):
1) Num bar que cobra
em média R$ 50,00, por mesa e tem cerca de 30 mesas no estabelecimento, levando
em conta que cada mesa é usada cerca de oito vezes por dia, quanto é arrecado diariamente
somente com a cobrança dos 10% do garçom?
Vejamos:
10% de R$ 50,00 = R$
5,00 por mesa x 30= R$ 150,00 x 08 = R$ 1.200,00 por dia.
Ou seja, se contarmos
somente os valores do final de semana a conta triplica. Este número – em tese –
é somente o valor adicional à conta, uma vez que os valores cobrados no consumo
e no serviço já vêm agregados àquilo que está descrito nos preços. O restante
do raciocínio lógico fica a critério de quem quiser especular seus próprios
números.
Claro que a realidade
dos fatos não é tão preto e branco assim e há sim aqueles proprietários de
estabelecimentos que lutam bravamente contra uma carga de impostos acachapante
e uma rotina infeliz de trabalho para oferecer um bom serviço. Mas também é
inegável que, mesmo com estes dados obviamente hipotéticos, esta lógica é bem
próxima do existente e se enquadra perfeitamente à realidade dos nossos dias e
noites de lazer. Principalmente na de qualquer atendente que ganha em média um
salário mínimo. Sem acréscimos.
Gorjeta também para o pessoal do hotel |
O consumo consciente é
mais que comprar um produto biodegradável. É saber que existem direitos e
deveres e não se constranger com em requerê-los ou cumpri-los. Aprender lidar
com nossa relação cordial/pessoal em tudo o que fazemos é parte daquela
desconstrução de que falei.
Só mais uma coisa: recomendo
não deixar de dar os 10% ao garçom. Mas gratifique-o diretamente, sem agregar o
valor à conta. Ganham todos: aquele que faz um bom trabalho, o proprietário que
cobra honestamente; o consumidor que deixa de ser lesado no serviço; e o mau funcionário,
que vai precisar rever sua forma de lidar com o cliente.
Realmente o jeitinho brasileiro está em todos os lugares. Não é difícil encontrar no próprio cardápio a cobrança dos 10%, destinada aos garçons. Só que, segundo um garçom amigo meu, com vasta experiência em várias casas da cidade, ele só conhecia UMA que realmente repassava para o garçom os 10%. Todas as outras eram formas de arrancar mais dinheiro do cliente em benefício do próprio patrão. Infelizmente, faz uns dois anos que me disse isso, e não lembro mais de qual era essa exceção nesse mar de desonestidade e exploração, típicos desse jeitinho brasileiro que tem sua principal origem em Portugal. Faço como você disse no último parágrafo: pago DIRETAMENTE ao garçom, obviamente se for bem-atendido, o que já é outra grande raridade em Conquista.
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