sexta-feira, 22 de março de 2013

O Ecad e suas fábulas

Por Marcelo Lopes

Gosto de contar histórias. Principalmente porque qualquer narrativa, da Ilíada a pequenos contos infantis como Chapeuzinho Vermelho, são simbolicamente ilustrativas de recortes da realidade e trazem uma carga forte de elementos que nos contam o que tivemos no passado, o que temos que lidar ainda hoje e, sobretudo, nos dão a exata medida dos nossos desafios e do tamanho do lobo que temos que matar para viver decentemente hoje em dia.

Desta forma, eis a nau.

Vinda fugida – digo, estrategicamente transferida - de Portugal por conta de um Napoleão em pele de lobo à suas costas, a Família Real Portuguesa desembarcou no Brasil em 1808. Primeiro em Salvador e logo em seguida no Rio de Janeiro para ficar. Quatorze navios trouxeram, além da família real, centenas de funcionários, criados, assessores, pessoas ligadas à corte portuguesa e logo se instalaram em casas de gente abastadas que foram - como diria – compulsoriamente convidadas a sair de suas residências para ceder lugar às visitas. Dentre outros aspectos que definiram a cara do nosso país, um dos maiores legados desse período é a criação de estruturas administrativas, até então inéditas no Brasil, que permitiram a D. João e sua corte gerir tudo por aqui, e Portugal por tabela enquanto Seu Lobo não fosse embora.

Pois bem, assim foram nomeados em terra brasilis uma infinidade de pessoas que manteriam a máquina do estado funcionando. Por não terem salário fixo, esses funcionários do interesse público recebiam comissões por serviços diversos em nome do Rei, parte destinada ao quinhão real, parte para seu próprio recebimento pecuniário. Alguém que cuidasse da alfândega, por exemplo, estabelecia valores que achava “justo” pelas mercadorias que circulavam nos portos, taxava-os, recebia os dividendos e repassava ao Estado, retirando antes o seu percentual. Logicamente, não havia uma eficiente fiscalização. Na verdade, era tudo mediado na base da burocracia sem regulamentação precisa, nas indicações de pessoas tecnicamente de “confiança”. Esta prática perdurou por muito tempo, enraizada na matriz de relações de favor e contrafavor de uma estrutura já cheia de problemas até que houvesse uma mudança legal que, posteriormente, estabeleceria um parâmetro de salários para os funcionários públicos. No entanto, este modelo de pagamentos percentuais “flexíveis” e de critérios muito pessoas (uma prática bem antiga na história humana, diga-se) já havia encontrado lugar cativo por aqui e continuou a ser realizada de forma menos visível. Oficialmente, estes “vencimentos” eram chamados de propina.

O Brasil de D. João ficou para trás e hoje a máquina do estado é outra (por favor, peço que não riam). Mas algumas coisas ainda são digna de nota. Ontem (21/03/13), li a seguinte notícia: “O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) e as seis associações representativas de direitos autorais que o compõem por formação de cartel ao fixar preços para atividades do mercado musical. Além disso, condenou o Ecad por fechamento de mercado. O órgão aplicou multa total de R$ 38,2 milhões, determinou que as práticas abusivas à concorrência sejam suspensas e recomendou ao Ministério da Cultura que passe a regular essa área”.

Para quem não sabe, o Ecad é o órgão brasileiro responsável pela a arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos seus autores, uma instituição privada criada pela Lei nº5.988/73 e mantida pela Lei Federal nº 9.610/98. Na prática, ela define por seus próprios critérios o que e quanto deve ser cobrado pela execução de músicas em qualquer espaço ou suporte, repassando-os – em tese – a quem de direito. Normalmente, o ritual que impõe sua presença é bem padronizado, com poucas variações: um sujeito chega com autoridade de um representante direto do Papa perguntando sobre o evento, qual a programação e, quando não encontra, se existe algum folheto de divulgação. Em seguida apresenta-se como fiscal do Ecad, mostrando uma carteira (que em 90% dos casos ninguém nunca viu na vida para saber se é verdadeira ou não) e emite uma ordem de cobrança. Afora a parte da cobrança ao final, o ritual pode mudar um pouco a ordem, mas o susto é sempre o mesmo.

Esse estranho e obscuro órgão é envolto sempre em questionamentos por parte do setor cultural e econômica, principalmente pelos próprios autores que dizem representar. Casos esdrúxulos como a cobrança de taxas por execução de músicas em festas de casamentos, ou em Tv’s ligadas em bares, são exemplos de abusos atribuídos a entidade. Em agosto de 2011 o Escritório sofreu uma CPI pelo senado para investigação da suspeita de fraudes nos pagamentos de direitos autorais. No ano seguinte se envolveu em uma nova polêmica ao tentar cobrar de blogs por vídeos incorporados do Youtube, depois direcionada a empresa Google, dona do site. Devido a repercussão negativa de proporções internacionais e ao tamanho da “vítima” o Ecad voltou atrás.

Na moral da nossa historinha, o que não é possível aceitar é que um órgão privado, juntamente com suas entidades associadas, detenha, sem nenhum critério regulatório ou um mínimo de transparência, o monopólio de toda arrecadação e distribuição dos direitos autorais no Brasil. Na contramão de tudo o que vem sendo construído no sentido da liberação de produções criativas – a exemplo do selo Creative Commons, que atribui autoria a obras diversas, mas possibilita outro modelo relação/consumo com público – a entidade é responsável por manter uma rigidez de mercado com uma postura que, em última instância, circula sempre sob pretextos esfumaçados. Arcaico, o Ecad não difere em nada dos antigos funcionários da corte, com agravantes ainda maiores: é uma entidade com representação em todo o país, criada e avalizada por uma lei federal, e que – afora o que já se apura para além da legalidade – inspira desconfiança pela sua própria existência num modelo com ampla margem à corupção. Não há um marco regulatório sequer que lhe seja atribuído de forma clara, e o Estado, por sua ausência, é conivente com isto. Entre a “propina” de D. João e a propina que conhecemos tão bem, quais são os termos que nos garantem que a arrecadação do Ecad não são frutos de critérios e interesses sumamente pessoais?

Se quem canta os males espanta, nem sempre isso chega a ser verdade. Fica aí uma reflexão que deve seguir para um estágio posterior ao da simples discussão; vale exigir, denunciar e reivindicar um modelo mais justo para quem produz arte no Brasil. Ou então corremos o risco, nessa lógica invertida, de sermos compulsoriamente convidados a sair do nosso lugar de produtores da cultura para ceder espaço aos novos donos das nossas próprias ideias.

* Depoimento interesante. Confira: 



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