Por Marcelo
Lopes
Narciso (1594-1596), por Caravaggio |
Eco
e Narciso são duas figuras míticas que, como arquétipos, desenham muito bem
histórias contadas e recontadas através dos tempos. A primeira personagem era
uma bela ninfa, apaixonada pelo segundo, um jovem de beleza incomparável, cuja consciência
da sua graça o levava a se achar semelhante a um deus. Eco, sem ter seu amor
correspondido, definhou melancolicamente, o que fez a deusa Némesis lançar
sobre Narciso uma lição à altura da sua frivolidade: o jovem apaixonou-se por
seu próprio reflexo na água na lagoa de Eco, onde se deitou num banco,
admirando seu próprio reflexo, embelezando-se, enquanto consumia-se pouco a
pouco. Mais tarde, ao procurarem seu corpo, encontraram apenas uma flor, que
hoje leva o seu nome.
Venus Anadyomene, óleo por Tiziano Vecelli |
Se
as pinturas e esculturas clássicas perpetuavam padrões corporais ideais, referências
máximas a serem seguidas na busca da beleza para homens, e muito especialmente,
para mulheres, o acesso popularizado a outras e mais diversas imagens com o
advento do cinema e da TV, criou mitos inalcançáveis de outra ordem de beleza,
cercados de narrativas heroicas e sedução à flor da pele. Assim, de Rodolfo Valentino a Errol Flynn e Clark Gable, de Rock Hudson a Tom Cruise, passando
por Greta Garbo, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Sharon Stone a Charlize Theron
e Megan Fox, todos os mitos do cinema carregam para fora das telas doses
cavalares de uma beleza que vai além dos próprios atores que os encarnam. Estes,
contando do início do século para cá, tiveram seu padrão mudado radicalmente:
os homens se tornando mais musculosos; as mulheres emagrecendo até não sobrar
mais onde pegar.
A era do Photoshop: ideal de beleza além da beleza |
Desta
forma, assim como Narciso, um número cada vez maior de pessoas definha frente a
um reflexo cuja imagem exige cada dia uma meta de beleza infinita. Exaltam a
frivolidade e a superficialidade, que vem em anexo a um consumo desenfreado, nos
estimulando em camadas e camadas de discursos midiáticos. Os reality shows, as modelos bombadas que
exibem seus corpos nas TV’s e revistas, e as propagandas - que, sob quilos de
maquiagens, cremes e imersões, prometendo o impossível - são reflexo e causa
desta busca frenética. Cada dia mais os jovens querem permanecer mais jovens e
os mais velhos buscam esticar sua juventude ad
infinitum, numa luta desigual contra o tempo e o corpo. Têm, todos eles, flutuando
sobre o ombro esquerdo, um capetinha miniatura que sussurra ao seu ouvido que é
possível vencer essa peleja, enquanto, no outro ombro, um anjinho bonitinho lhes
diz que nunca na vida você pode ficar tão lindo quanto ele.
Casos
de inconsequências geradas por essa busca incessante não são poucos. Pipocam
pela mídia, histórias em que a odisseia pelo corpo perfeito trazem, ao invés do
esperado, deformações provocadas pelo exercício corporal mal feito, pelas
cirurgias plásticas nos rostos e no corpo, entortando tudo, inclusive a cabeça
de muita gente. Recentemente, em Vitória da Conquista, quatro jovens deram
entrada em hospitais da cidade após terem utilizado anabolizantes – usados comumente
em cavalos – para turbinarem sua musculatura, compartilhada na mesma seringa.
Dois ainda correm risco de morrer e podem, um deles, ter os membros superiores
amputados, e o outro, as pernas. Não é incomum, no cotidiano das academias, o
uso de recursos extremos como estes. Na verdade, para atender a uma moda tão
irreal, o absurdo se incorpora aos meios para alcançá-la.
Pensar
o ideal estético do nosso tempo e tudo o que o implica não é possível sem compreender
como somos tão fartamente bombardeados na nossa parcela narcisista. Bajulados,
aliciados nas ruas, em casa, no trabalho, somos atalhados pela mídia naquilo onde
mais somos vulneráveis, o nosso desejo. Vendem-nos o impossível em frascos, em
carros, em móveis e imóveis, em estilos de vida e nos sentimos, mesmo sem ter
como, parte disto. Entregues, nos deixamos levar. Queremos nos achar mais
bonitos do que somos, e mesmo que o sejamos, ignoramos os riscos de querer ter (e
não ser) mais. Por isso, tendemos, nessa lógica, a definhar também, sem nunca
alcançar o reflexo. E, após tudo isso, não é possível que não sobre nem uma
flor com nosso nome.
Caríssimo, ótima publicação!
ResponderExcluirEstava me lembrando de uma brincadeira sobre complexos. Vários tipos de complexos relacionados a mitos de estórias, personagens, por exemplo: Complexo de Cinderela, que quando dá meia noite, a pessoa, moça ou rapaz, tem que voltar pra casa,rs. Lembrei vendo o artigo seu, do Complexo de Dorian Gray, que quer permanecer sempre jovem, jovial...
Grande, João...
ResponderExcluirA ideia de uma juventude eterna é mais um produto de venda que vemos em todo o lugar... Como não há maneiras de associar verdadeiramente a parada do tempo com qualquer solução que o faça, este é um produto irreal e esta irrealidade é que estimula comportamentos estranhos, neuróticos, obsessivos... no fim estimula também todo tipo de complexo.
Isso nos afeta mais diretamente do que parece.
Do meu lado, exercito todos os dias o convívio com minha barba branca precoce sem problemas, hehehe.