domingo, 7 de agosto de 2011

A Falta que Nos Move, de Christiane Jatahy (Brasil, 2009)

por Eduardo Valente

E o teatro, o que é?

Quando sai da tela o último plano de A Falta que Nos Move, aparece um crédito que nos informa sobre os 10 “procedimentos” para sua realização. Trata-se de uma lista que inclui algumas das “regras do jogo” (do tipo “três câmeras rodando simultaneamente” ou “doze horas seguidas de trabalho”), além de outras questões que falam mais sobre estatutos referentes àquilo que acabamos de ver (“algumas histórias são verdade, outras não”). Mais do que explicar algo sobre o processo do filme a partir destes tópicos, porém, o que esta lista nos explica acima de tudo é algo que resideno simples fato da necessidade de sua existência em tela: A Falta que Nos Move é um filme-exercício, um filme-processo, um filme-dispositivo, e sem a explicitação de suas regras não faz sentido – talvez, e isso é sintomático e importante, menos para o espectador, do que para os responsáveis pela sua realização.

No entanto, e essa distinção é essencial, se falar das suas condições de realização é algo tão importante para o filme, é claro que A Falta que Nos Move poderia optar por expor estas regras de saída, colocando-as na tela antes do filme e não no final. Por que, então, esta escolha de expor esta lista só no fechamento. Claro, há a resposta mais óbvia e simples: porque assim o espectador pode ficar em suspense ao longo da projeção, tentando compreender por si mesmo algumas das condições que regem o comportamento e a ação em cena dos atores, e também da equipe técnica (câmeras “vazam” em quadro várias vezes ao longo do filme – mas de uma maneira bem radical logo nos primeiros planos, como se a dizer “olha, isso pode neste filme”; e a diretora “intervém” na ação através do envio de eventuais torpedos de celular para os atores/personagens).

Mas, se há este motivo prático compreensível para esta opção da exposição das regras no fechamento, ainda assim ela não deixa de ser altamente questionável, pelo simples fato de que é uma traição ao que o próprio filme parece querer afirmar como sua principal profissão de fé: o fato de que a arte da performance de um ator possui força tal que, mesmo assumida totalmente a falsidade da encenação (câmeras em cena, atores se referindo constantemente ao fato daquilo ser a realização de um filme), algo acontece ali em que intrinsecamente nós acreditamos. Mas, se isso é verdade mesmo, qual a necessidade então de atrelar o filme a esta exposição de regras ao final? Por que o espectador precisa de explicações, ainda mais na saída do filme, se supostamente o mistério e a indistinção sempre se afirmaram como potências em cena?
É neste ponto que voltar ao trabalho de Eduardo Coutinho (e não só o mais recente, em que propõe mergulho mais radical no estado de teatro inerente ao contato humano) se torna, embora a princípio óbvio, de fato inevitável ao falarmos do filme de Christiane Jatahy. Porque Coutinho sempre se pautou por esta ordenação simples e óbvia: primeiro, exponho as regras, depois vamos ao filme (metaforicamente falando já que, sim, as regras são parte do filme). Não se trata aqui, longe disso, de afirmar que tudo que Coutinho faz precisa ser seguido nem que estará sempre certo, mas apenas compreender que os motivos dele para esta opção são exatamente aqueles que expõem os limites de A Falta que Nos Move: aqui as regras precisam ser expostas só no final do filme porque, para ele, afirmar o caráter de exercício e de processo é mais importante do que realmente acreditar que, deste exercício e deste processo, pode sair algo tão naturalmente potente que seja mais poderoso do que suas próprias regras, ao ponto mesmo de independer delas. É aí que a equação se torna cristalina: quando, em Moscou, Coutinho primeiro expõe regras de um processo (ainda que um tanto confuso e incerto) e depois mergulha nas cenas, existe ali a afirmação de como estas cenas existem com força por si mesmas, capazes de suplantar mesmo as regras ou o processo. Já A Falta que Nos Move acaba regido pela lógica contrária: as cenas até podem ser potentes aqui e ali, mas ao fim e ao cabo o que temos de mais forte, da parte do espectador e do filme, é o interesse em entender (e explicar) as regras que levaram ao surgimento destas cenas. Ou seja: o processo é mais importante que o resultado, que o filme.
É nesse ponto, mais do que todos, que o filme se revela profundamente teatral, para além de sua origem ser uma peça (e sua diretora e atores figuras importantes da cena teatral carioca). Pois não importa que, em termos de linguagem, haja um esforço considerável para dar dinamismo ao que se vê, como se justamente nisso se buscasse fugir de possíveis engessamentos desta matriz teatral – usando, inclusive e sintomaticamente, verdadeiras autoridades de uma “linguagem cinematográfica brasileira atual” (nomes como Walter Carvalho na fotografia ou Sérgio Mekler na edição - e, de fato, o primeiro e seus câmeras encontram soluções de iluminação e quadro bastante bonitos, assim como o segundo consegue impor à dinâmica interna das cenas um ritmo e uma lógica bastante interessantes). Afirmamos que não importa porque o que há de teatral no filme antecede e se sobrepõe a qualquer linguagem: é o seu projeto, que perde um tanto do sentido quando não é mais algo que acontece a cada noite num palco, como no teatro, mas sim eternizado em apenas um estado (um “corte”, para sermos técnicos), como exige o cinema. Eternizar este um corte significará, sempre, que o cinema continua sendo, queira-se ou não, a arte do diretor: uma onde pode-se até colocar o ator como parte essencial da sua criação, para além da sua performance (afirmando, por exemplo, um trabalho coletivo de escritura de roteiro), mas ainda assim ele, o ator, não será o dono do poder sobre o discurso - como é no teatro.
Parece muito justo, então, que o momento mais forte de A Falta que Nos Move seja aquele em que a câmera recue de sua movimentação constante de cena e se coloque, como no teatro (clássico), frontalmente à cena, parada, observando o fenômeno da performance dos atores que choram, dispostos lateralmente, sentados num sofá. Ali, finalmente, o filme assume, para além de qualquer exercício e qualquer processo, aquilo que ele pode afirmar de mais potente - e com o que ele parece brigar ao longo de toda sua duração: o poder do ator sobre o olhar que se deita sobre ele. Ali, finalmente, não importa o quanto saibamos que o choro é colocado em cena para nós, e só para nós (um dos personagens, exercendo ali o papel de diretor, pede literalmente que todos se sentem e chorem): ele pode emocionar mesmo assim, porque a verdade ou não de sua origem é menos importante do que a verdade da sua existência física, pela encenação e pela atuação. Esta é a essência do teatro (e, sim, em grande parte do cinema de atores), e quando A Falta que Nos Move atinge a essência de sua própria arte, ele finalmente parece tranquilo e vivo. Mas na maior parte de sua duração ele só transmite mesmo todo o suor e esforço que se está dispendendo para tentar criar em tela essa vida e potência que, afinal, nos melhores casos, não precisa tanto assim de ser teorizada, exposta ou "metalinguisticada": ela é - ou não.
Setembro de 2009
Fonte:http://www.revistacinetica.com.br/afaltaquenosmove.htm

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