por Eduardo Valente
Quando sai da tela o último plano de A Falta que Nos Move, aparece um crédito que nos informa sobre os 10 “procedimentos” para sua realização. Trata-se de uma lista que inclui algumas das “regras do jogo” (do tipo “três câmeras rodando simultaneamente” ou “doze horas seguidas de trabalho”), além de outras questões que falam mais sobre estatutos referentes àquilo que acabamos de ver (“algumas histórias são verdade, outras não”). Mais do que explicar algo sobre o processo do filme a partir destes tópicos, porém, o que esta lista nos explica acima de tudo é algo que resideno simples fato da necessidade de sua existência em tela: A Falta que Nos Move é um filme-exercício, um filme-processo, um filme-dispositivo, e sem a explicitação de suas regras não faz sentido – talvez, e isso é sintomático e importante, menos para o espectador, do que para os responsáveis pela sua realização.
No entanto, e essa distinção é essencial, se falar das suas condições de realização é algo tão importante para o filme, é claro que A Falta que Nos Move poderia optar por expor estas regras de saída, colocando-as na tela antes do filme e não no final. Por que, então, esta escolha de expor esta lista só no fechamento. Claro, há a resposta mais óbvia e simples: porque assim o espectador pode ficar em suspense ao longo da projeção, tentando compreender por si mesmo algumas das condições que regem o comportamento e a ação em cena dos atores, e também da equipe técnica (câmeras “vazam” em quadro várias vezes ao longo do filme – mas de uma maneira bem radical logo nos primeiros planos, como se a dizer “olha, isso pode neste filme”; e a diretora “intervém” na ação através do envio de eventuais torpedos de celular para os atores/personagens).
É neste ponto que voltar ao trabalho de Eduardo Coutinho (e não só o mais recente, em que propõe mergulho mais radical no estado de teatro inerente ao contato humano) se torna, embora a princípio óbvio, de fato inevitável ao falarmos do filme de Christiane Jatahy. Porque Coutinho sempre se pautou por esta ordenação simples e óbvia: primeiro, exponho as regras, depois vamos ao filme (metaforicamente falando já que, sim, as regras são parte do filme). Não se trata aqui, longe disso, de afirmar que tudo que Coutinho faz precisa ser seguido nem que estará sempre certo, mas apenas compreender que os motivos dele para esta opção são exatamente aqueles que expõem os limites de A Falta que Nos Move: aqui as regras precisam ser expostas só no final do filme porque, para ele, afirmar o caráter de exercício e de processo é mais importante do que realmente acreditar que, deste exercício e deste processo, pode sair algo tão naturalmente potente que seja mais poderoso do que suas próprias regras, ao ponto mesmo de independer delas. É aí que a equação se torna cristalina: quando, em Moscou, Coutinho primeiro expõe regras de um processo (ainda que um tanto confuso e incerto) e depois mergulha nas cenas, existe ali a afirmação de como estas cenas existem com força por si mesmas, capazes de suplantar mesmo as regras ou o processo. Já A Falta que Nos Move acaba regido pela lógica contrária: as cenas até podem ser potentes aqui e ali, mas ao fim e ao cabo o que temos de mais forte, da parte do espectador e do filme, é o interesse em entender (e explicar) as regras que levaram ao surgimento destas cenas. Ou seja: o processo é mais importante que o resultado, que o filme.
Parece muito justo, então, que o momento mais forte de A Falta que Nos Move seja aquele em que a câmera recue de sua movimentação constante de cena e se coloque, como no teatro (clássico), frontalmente à cena, parada, observando o fenômeno da performance dos atores que choram, dispostos lateralmente, sentados num sofá. Ali, finalmente, o filme assume, para além de qualquer exercício e qualquer processo, aquilo que ele pode afirmar de mais potente - e com o que ele parece brigar ao longo de toda sua duração: o poder do ator sobre o olhar que se deita sobre ele. Ali, finalmente, não importa o quanto saibamos que o choro é colocado em cena para nós, e só para nós (um dos personagens, exercendo ali o papel de diretor, pede literalmente que todos se sentem e chorem): ele pode emocionar mesmo assim, porque a verdade ou não de sua origem é menos importante do que a verdade da sua existência física, pela encenação e pela atuação. Esta é a essência do teatro (e, sim, em grande parte do cinema de atores), e quando A Falta que Nos Move atinge a essência de sua própria arte, ele finalmente parece tranquilo e vivo. Mas na maior parte de sua duração ele só transmite mesmo todo o suor e esforço que se está dispendendo para tentar criar em tela essa vida e potência que, afinal, nos melhores casos, não precisa tanto assim de ser teorizada, exposta ou "metalinguisticada": ela é - ou não.
Setembro de 2009
Fonte:http://www.revistacinetica.com.br/afaltaquenosmove.htm
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